no início era o começo.
o depois veio vindo devagar.
o antes veio depois do depois.
só quando esse se estabeleceu.
no princípio era o agora.
isso demorou até que
tudo virou antes e depois.
então uma revolução peluda
o agora voltou ao trono.
antes e depois viraram
falta do que fazer.
e tanto fizeram
que o agora virou tudo
e o tudo, nada.
de volta ao princípio
o agora congelou.
o antes fica pra depois.
Desconfia dos que não fumam;
esses não têm vida interior, não tem sentimentos.
O cigarro é uma maneira sutil, e disfarçada de suspirar.
Fumar é um jeito discreto de ir queimando as ilusões perdidas. Daí esse
ar aliviado e triste dos fumantes solitários. Vocês ainda não repararam
que ninguém fuma sorrindo?”
Eu sei quando corro perigo.
É quando convido
provoco
desafio
instigo
incito
estimulo
espicaço
faço pirraça.
E não me controlo
nem sou razoável.
É quando estou viva.
E por que haverias de querer minha alma
Na tua cama?
Disse palavras líquidas, deleitosas, ásperas
Obscenas, porque era assim que gostávamos.
Mas não menti gozo prazer lascívia
Nem omiti que a alma está além, buscando
Aquele Outro. E te repito: por que haverias
De querer minha alma na tua cama?
Jubila-te da memória de coitos e acertos.
Ou tenta-me de novo. Obriga-me.
Lev Yashin: o homem que revolucionou a posição de goleiro
Lev Yashin referência mundial para
quem atua como goleiro de futebol, essa posição tão complicada do
esporte. O russo, quem diria, iniciou sua carreira defendendo gols de
hóquei no gelo na equipe da fábrica de ferramentas onde trabalhava, em
Moscou, capital da União Soviética. Aos 14 anos, foi descoberto pelo
Dínamo de Moscou, clube onde permaneceu durante seus 22 anos de
carreira.
O russo mudou o conceito de que o goleiro deveria ficar parado
debaixo das traves aguardando o arremate do atacante. Na década de 1950,
o jogador deixou de se restringir à pequena área e passou a se portar
virtualmente como um líbero, o que possibilitou cortar cruzamentos
altos, defender bolas nos pés dos atacantes e bloquear os ângulos antes
da finalização.
Recebeu
a alcunha de Aranha Negra por causa do uniforme negro que sempre
envergava debaixo das traves. Além disso, alguns dizem que o apelido
também foi dado por conta de tamanha habilidade de Lev Yashin em
realizar defesas extraordinárias. Tão extraordinárias que mais parecia
ter oito braços, em vez de apenas dois como os meros mortais. Um jogador
de estilo arrojado para a sua posição e frieza nos momentos de decisão.
Yashin costumava dizer que antes de partidas de grande importância, a
receita de suas atuações mitológicas era, antes de entrar em campo,
fumar um cigarro para acalmar os nervos e beber uma dose de vodka para
tonificar os músculos. E, de acordo com os registros históricos, a
receita deu muito certo, já detém números impressionantes em sua
carreira: ao todo foram 812 jogos na carreira, sendo 326 pelo Dínamo de
Moscou e 78 pela seleção da URSS; inacreditáveis 150 pênaltis defendidos
e 270 partidas sem levar um único gol.
Pela seleção soviética participou de quatro Copas do Mundo (1958,
1962, 1966 e 1970). Na última, já com 40 anos, ficou no banco de
reservas e não jogou. Mas ele foi o grande responsável pela conquista da
melhor colocação da União Soviética na história: um quarto lugar em
1966. Quando se despediu da seleção nacional, foram necessários 12 anos
para que o país conseguisse disputar novamente um Mundial. E Lev Yashin é
até hoje o único goleiro a receber a Bola de Ouro, prestigiada
premiação da France Football que elege o melhor jogador da Europa, em
1963.
Por
sua contribuição ao esporte, o russo detém diversos títulos e
homenagens. Em seu jogo de despedida, em 1971, a FIFA o presenteou com
uma medalha de ouro especial. Em eleição realizada pela entidade máxima
do futebol, Lev Yashin foi escolhido o melhor goleiro do século 20. Foi
eleito, também, como o melhor jogador russo dos 50 anos da UEFA. E para
se ter uma ideia da importância desse homem para a Rússia, o goleiro foi
condecorado com a medalha de Lênin, maior tributo a um cidadão
soviético por serviços prestados ao seu país. Apenas Yuri Gagarin (1º
homem a ir para o espaço) e Vasily Zaitsev (herói da batalha de
Stalingrado) receberam essa mesma honra.
Em frente ao estádio do Dínamo de Moscou, o maior da Rússia, há um
monumento em sua homenagem e em seu túmulo uma escultura estilizada.
Nada mais justo para um homem que em plena Guerra Fria, caracterizada
pela corrida espacial, conseguiu provar, através de seus saltos para
realizar defesas, que o homem também pode voar.
Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer razão de meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida! Não vejo nada assim enlouquecida…
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida! “Tudo no mundo é frágil, tudo passa…”
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim! E, olhos postos em ti, vivo de rastros:
“Ah! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: princípio e fim!…”
Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro. Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só sabem ser aranhas e formigas. Que este amor só me veja de partida.
só quero
o que não
o que nunca
o inviável
o impossível não quero
o que já
o que foi
o vencido
o plausível só quero
o que ainda
o que atiça
o impraticável
o incrível não quero
o que sim
o que sempre
o sabido
o cabível eu quero
o outro
a palavra vive no papel com vírgulas hífens crases reticências leva uma vida reclusa de carmelita decalça corpo palavra o corpo aprender a ler na rua com manchetes de jornais jogadas na cara pelo vento com gírias palavrões zoando no ouvido com gritos sussurros impressos na pele palavra corpo a palavra quer sair de si a palavra quer cair no mundo a palavra quer soar por aí a palavra quer ir mais fundo a palavra funda a palavra quer a palavra fala: - eu quero um corpo ! corpo palavra o corpo sabe letras com gosto de carne osso unha e gente o corpo lê nas entrelinhas o corpo conhece os sinais o corpo não mente o corpo quer dizer o que sabe o corpo sabe o corpo quer o corpo diz: - fala palavra !!! palavracorpo corpopalavra
Que a força do medo que tenho
Não me impeça de ver o que anseio Que a morte de tudo em que acredito
Não me tape os ouvidos e a boca
Porque metade de mim é o que eu grito
Mas a outra metade é silêncio. Que a música que ouço ao longe
Seja linda ainda que tristeza
Que a mulher que eu amo seja pra sempre amada
Mesmo que distante
Porque metade de mim é partida
Mas a outra metade é saudade. Que as palavras que eu falo
Não sejam ouvidas como prece e nem repetidas com fervor
Apenas respeitadas
Como a única coisa que resta a um homem inundado de sentimentos
Porque metade de mim é o que ouço
Mas a outra metade é o que calo. Que essa minha vontade de ir embora
Se transforme na calma e na paz que eu mereço
Que essa tensão que me corrói por dentro
Seja um dia recompensada
Porque metade de mim é o que eu penso mas a outra metade é um vulcão. Que o medo da solidão se afaste, e que o convívio comigo mesmo se torne ao menos suportável. Que o espelho reflita em meu rosto um doce sorriso
Que eu me lembro ter dado na infância
Por que metade de mim é a lembrança do que fui
A outra metade eu não sei. Que não seja preciso mais do que uma simples alegria
Pra me fazer aquietar o espírito
E que o teu silêncio me fale cada vez mais
Porque metade de mim é abrigo
Mas a outra metade é cansaço. Que a arte nos aponte uma resposta
Mesmo que ela não saiba
E que ninguém a tente complicar
Porque é preciso simplicidade pra fazê-la florescer
Porque metade de mim é platéia
E a outra metade é canção. E que a minha loucura seja perdoada
Porque metade de mim é amor
E a outra metade também.
Waldemar Henrique era filho de um descendente de portugueses e de indígenas. Depois de perder a mãe muito cedo, foi com o pai para Portugal, retornando ao Brasil em 1918. A partir de então viajou pelo interior da Amazônia,
época em que travou contato com os elementos da cultura e do folclore
amazônicos que seriam mais tarde característicos de sua obra musical.
A primeira música de sucesso de Waldemar Henrique foi Minha Terra, composta em 1923. Em 1929
estudou no Conservatório Carlos Gomes. Sua família era contra, e seu
pai insistiu para que ele se desviasse de sua vocação empregando-o num
banco.
Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1933, onde estudou piano, composição, orquestração e regência.
Suas obras têm principalmente como tema o folclore amazônico, indígena,
nortista e brasileiro. Waldemar Faleceu em 29 de Março de 1995 aos 90
anos vitima de Câncer
É difícil fazer alguém feliz, assim como é fácil fazer triste.
É difícil dizer eu te amo, assim como é fácil não dizer nada
É difícil valorizar um amor, assim como é fácil perdê-lo para sempre.
É difícil agradecer pelo dia de hoje, assim como é fácil viver mais um dia.
É difícil enxergar o que a vida traz de bom, assim como é fácil fechar os olhos e atravessar a rua.
É difícil se convencer de que se é feliz, assim como é fácil achar que sempre falta algo.
É difícil fazer alguém sorrir, assim como é fácil fazer chorar.
É difícil colocar-se no lugar de alguém, assim como é fácil olhar para o próprio umbigo.
Se você errou, peça desculpas...
É difícil pedir perdão? Mas quem disse que é fácil ser perdoado?
Se alguém errou com você, perdoa-o...
É difícil perdoar? Mas quem disse que é fácil se arrepender?
Se você sente algo, diga...
É difícil se abrir? Mas quem disse que é fácil encontrar
alguém que queira escutar?
Se alguém reclama de você, ouça...
É difícil ouvir certas coisas? Mas quem disse que é fácil ouvir você?
Se alguém te ama, ame-o...
É difícil entregar-se? Mas quem disse que é fácil ser feliz?
Nem tudo é fácil na vida...Mas, com certeza, nada é impossível
Precisamos acreditar, ter fé e lutar
para que não apenas sonhemos, Mas também tornemos todos esses desejos,
realidade!!!
AUSÊNCIA Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim.
A primeira vez que o telefone tocou ele não se moveu. Continuou sentado
sobre a velha almofada amarela, cheia de pastoras desbotadas com coroas
de flores nas mãos. As vibrações coloridas da televisão sem som faziam a
sala tremer e flutuar, empalidecida pelo bordô mortiço da cor de luxe
de um filme antigo qualquer. Quando o telefone tocou pela segunda vez
ele estava tentando lembrar se o nome daquela melodia meio arranhada e
lentíssima que vinha da outra sala seria mesmo “Desespero agradável” ou
“Por um desespero agradável”. De qualquer forma, pensou, desespero. E
agradável.
A luz de mercúrio da rua varava os orifícios das cortinas
de renda misturando-se, azulada, à cor meio decomposta do filme. Pouco
antes do telefone tocar pela terceira vez ele resolveu levantar-se —
conferir o nome da música, disse para si mesmo, e caminhou para dentro
atravessando o pequeno corredor onde, como sempre, a perna da calça
roçou contra a folha rajada de uma planta. Preciso trocá-la de lugar,
lembrou, como sempre. E um pouco antes ainda de estender a mão para
pegar o telefone na estante, inclinou-se sobre as capas de discos
espalhadas pelo chão, entre um cinzeiro cheio e um caneco de cerâmica
crua quase vazio, a não ser por uns restos no fundo, que vistos assim de
cima formavam uma massa verde, úmida e compacta. “Désespoir agréable”,
confirmou. Ainda em pé, colocou a capa branca do disco sobre a mesa
enquanto repetia mentalmente: de qualquer forma, desespero. E agradável.
— Lui? — A voz conhecida. — Alô? É você, Lui?
— Eu — ele disse.
— O que é que você está fazendo?
Ele
sentou-se. Depois estendeu o braço em frente ao rosto e olhou a palma
aberta da própria mão. As pequenas áreas descascadas, ácido úrico,
diziam, corroendo lento a pele.
— Alô? Você está me ouvindo?
— Oi — ele disse.
Perguntei o que é que você estava fazendo?
— Fazendo? Nada. Por aí, ouvindo música, vendo tevê. — Fechou a mão. — Agora ia fazer um café. E dormir.
Hein? Fala mais alto.
— Mas não sei se tem pó.
—O quê?
— Nada, bobagem. E você?
Do
outro lado da linha, ela suspirou sem dizer nada. Então houve um
silêncio curto e em seguida um clique seco e uma espécie de sopro. Deve
ter acendido um cigarro, ele pensou. Dobrou mecanicamente o corpo para a
esquerda até trazer o cinzeiro cheio de pontas para o lado do telefone.
— Que que houve? — perguntou lento, olhando em volta à procura de um maço de cigarros.
— Escuta, você não quer dar uma saída?
— Estou cansado. Não tenho cabeça. E amanhã preciso acordar muito cedo.
— Mas eu passo aí com o carro. Depois deixo você de novo. A gente não demora nada. Podia ir a um bar, a um cinema, a um.
— Já passa das dez — ele disse.
A voz dela ficou um pouco mais aguda.
—
E vir aqui, quem sabe. Também você não quer, não é? Tenho uma vodca
ótima. Daquelas. Você adora, nem abri ainda. Só não tenho limão, você
traz? — A voz ficou subitamente tão aguda que ele afastou um pouco o
fone do ouvido. Por um momento ficou ouvindo a melodia distante, lenta e
arranhada do piano. Através dos vidros da porta, com a luz acesa nos
fundos, conseguia ver a copa verde das plantas no jardim, algumas folhas
amareladas caídas no chão de cimento. Sem querer, quase estremeceu de
frio. Ou uma espécie de medo. Esfregou a palma seca da mão esquerda
contra a coxa. A voz dela ficou mais baixa quando perguntou:
— E se eu fosse até aí?
Os
dedos dele tocaram o maço de cigarros no bolso da calça. Ele contraiu o
ombro direito, equilibrando o fone contra o rosto, e puxou devagar o
maço.
— Sabe o que é — disse.
—Lui?
Com os dentes, ele prendeu o filtro de um dos cigarros. Mordeu-o, levemente.
— Alô, Lui? Você está aí?
Ele
contraiu mais o ombro para acender o cigarro. O fone quase se
desequilibrou. Tragou fundo. Tornou a pegar o fone com a mão e soltou
pouco a pouco o ombro dolorido soprando a fumaça.
— Eu já estava quase dormindo.
— Que música é essa aí no fundo? — ela perguntou de repente.
Ele puxou o cinzeiro para perto. Virou a capa do disco nas mãos.
Ele bateu o cigarro três vezes na borda do cinzeiro, mas não caiu nenhuma cinza.
— Um cara aí. Um doido.
— Como ele se chama?
— Erik Satie — ele disse bem baixo. Ela não ouviu.
— Lui? Alô, Lui?
— Digue.
—
Estou te enchendo o saco? — Outra vez ele escutou o silêncio curto, o
clique seco e o sopro leve. Deve ter acendido outro cigarro, pensou. E
soprou a fumaça.
— Não — disse.
— Estou te enchendo? Fala. Eu sei que estou.
— Tudo bem, eu não estava mesmo fazendo nada.
— Não consigo dormir — ela disse muito baixo.
— Você está deitada?
— É, lendo. Aí me deu vontade de falar com você.
Ele tragou fundo. Enquanto soprava a fumaça, curvou outra vez o corpo para apanhar
o caneco de cerâmica. Enfiou o indicador até
o fundo, depois mordiscou as folhas miúdas
com os incisivos e perguntou:
— O que é que você estava lendo?
— Nada, não. Uma matéria aí numa revista. Um negócio sobre monoculturas e sprays.
— What about?
—Hein?
— O que você estava lendo.
Ela tossiu. Depois pareceu se animar.
—
Umas coisas assim, ecologias, sabe? Dizque se você só planta uma
espécie de coisa na terra por muitos anos, ela acaba morrendo. A terra,
não a coisa plantada, entende? Soja, por exemplo. Dizque acaba a camada
de húmus. Parece que eucalipto também. Depois aos poucos vira deserto.
Vão ficando uns pontos assim. Vazios, entende? Desérticos. Espalhados
por toda a terra.
O disco acabou, ele não se mexeu. Depois, recomeçou.
—
Assim como se você pingasse uma porção de gotas de tinta num
mata-borrão — ela continuou. — Eles vão se espalhando cada vez mais.
Acabam se encontrando uns com os outros um dia, entende? O deserto fica
maior. Fica cada vez maior. Os desertos não param nunca de crescer,
sabia?
— Sabia — ele disse.
— Horrível, não?
— E os sprays?
—O quê?
— Os sprays. O que é que tem os sprays?
—
Ah, pois é. Foi na mesma revista. Diz que cada apertada que você dá
assim num tubo de desodorante. Não precisa ser desodorante, qualquer
tubo, entende? Faz assim ah, como é que eu vou dizer? Um furo, sabe? Um
rombo, um buraco na camada de como é mesmo que se diz?
— Ozônio — ele disse.
— Pois é, ozônio. O ar que a gente respira, entende? A biosfera.
— Já deve estar toda furadinha então — ele disse.
—O quê?
— Deve estar toda furada — ele repetiu bem devagar. — A camada. A biosfera. O ozônio.
— Já pensou que horror? Você sabia dis so
Lui?
Ele não respondeu.
— Alô, Lui? Você ainda está aí?
— Estou.
— Acho que fiquei meio horrorizada. E com medo. Você não tem medo, Lui?
— Estou cansado.
Do
outro lado da linha, ela riu. Pelo som, ele adivinhou que ela ria sem
abrir a boca, apenas os ombros sacudindo, movendo a cabeça para os
lados, alguns fios de cabelo caídos nos olhos.
— Não estou te
alugando? — ela perguntou. — Você sempre dizque eu te alugo. Como se
você fosse um imóvel, uma casa. Eu, se fosse uma casa, queria uma
piscina nos fundos. Um jardim enorme. E ar-condicionado. Que tipo de
casa você queria ser, Lui?
— Eu não queria ser casa.
- Como?
— Queria ser um apartamento.
— Sei, mas que tipo?
Ele suspirou:
— Uma quitinete. Sem telefone.
— O quê? Alô, Lui? Você não ia mesmo fazer nada?
— Um chá, eu ia fazer um chá.
— Não era café? Me lembro que você falou que ia fazer café.
—
Não tem mais pó. — Ele lambeu a ponta do indicador, depois umedeceu o
nariz por dentro. Então sacudiu o cinzeiro cheio de pontas queimadas e
cinza. Algumas partículas voaram, caindo sobre a capa branca do disco,
com um desenho abstrato no centro. Com cuidado, juntou-as num montinho
sobre o canto roxo da figura central. — Nem coador de papel. E acabei de
me lembrar que tenho um chá incrível. Tem até uma bula louquíssima,
quer ver? Guardei aqui dentro. — Ele equilibrou o fone com o ombro e
abriu a cadernetinha preta de endereços.
— Chá não tem bula — ela resmungou. Parecia aborrecida, meio infantil. — Bula é de remédio.
—
Tem sim, esse chá tem. Quer ver só? — Entre duas fotos polaroid
desbotadas, na contracapa da caderneta, encontrou o retângulo de papel
amarelo dobrado em quatro.
— Lui? Você não quer mesmo vir até aqui?
Sabe — ela tornou a rir, e desta vez ele imaginou que quase escancarava a
boca, passando devagar a língua pelos lábios ressecados de cigarro —,
eu acho que fiquei meio impressionada com essa história dos desertos,
dos buracos, do ozônio. Lui, você acha que o mundo está mesmo no fim?
Ele
desdobrou sobre a mesa o papel amarelo, ao lado das duas fotos tão
desbotadas quanto as manchas redondas de xícaras quentes na madeira
escura. Uma das fotos era de uma mulher quase bonita, cabelos presos e
brincos de ouro em forma de rosas miudinhas. A outra era de um rapaz com
blusa preta de gola em V, o rosto apoiado numa das mãos, leve
estrabismo nos olhos escuros.
— Sem falar nas usinas nucleares — ele
disse. E com a ponta dos dedos, do canto roxo do desenho na capa do
disco, foi empurrando o montículo de cinzas por cima das formas
torcidas, marrom, amarelo, verde, até o espaço branco e, por fim,
exatamente sobre o rosto do rapaz da foto.
— Lui? — ela chamou inquieta. — Encontrou o negócio do tal chá?
— Encontrei.
— Você está esquisito. O que é que há?
—
Nada. Estou cansado, só isso. Quer ver o que diz a bula? É inglês, você
entende um pouco, não é? — Ela não respondeu. Então ele leu, dramático:
—... is exceilent for ali types of nervous disorders, paranoia,
schizophrenia, drugs effects, digestive problems, hornionai diseases and
other disorders... — Começou a rir baixinho, divertido: — Entendeu?
— Entendi — ela disse. — É um inglês fácil, qualquer um entende. Porreta esse chá, hein? É inglês?
Ele continuou rindo:
—
Chinês. Aqui embaixo diz produced in China. — Com a cinza, cobriu todo o
olho estrábico do rapaz. — Drugs effects é ótimo, não é?
— Maravilhoso — ela falou. — O disco tá tocando de novo, já ouvi esse
— Tá bom — ela disse.
—
Tá bom — ele repetiu. E pensou que quando começavam a falar desse jeito
sempre era um sinal tácito para algum desligar. Mas não quis ser o
primeiro.
— Vou tirar amanhã — ela falou de re pente.
—Hein?
— Nada. Vai fazer teu chá.
—
Tá bom. Aqui diz também que tem vitamina E. — Abriu a mão e olhou as
manchas branquicentas na palma. — Não é essa que é boa para a pele?
— Acho que aquela é a A. Não entendo muito de vitaminas.
—
Nem eu. A C eu sei que é a da gripe, todo mundo sabe. Qual será a que
cura os tais drugs effects? Cheirei todas hoje. Estou com aquele...
vazio intenso, sabe como?
— Não sei. — De repente ela parecia apressada. — Vou desligar.
— Você ligou o rádio?
— Ainda não. Como é mesmo o nome dessa música?
— “Por um desespero agradável” — ele mentiu outra vez, depois corrigiu: — Não. É só “Desespero agradável”.
— Agradável?
— É, agradável. Por que não?
— Engraçado. Desespero nunca é agradável.
— Às vezes sim. Cocaína, por exemplo.
— Você só pensa nisso?
— Não, penso em fazer um chá também.
— Hein?
—
Mas essa que tá tocando agora é outra, ouça. — Ele ergueu um momento o
fone no ar em direção às caixas de som e ficou um momento assim, parado.
— São todas muito parecidas. Só piano, mais nada. — A cinza cobria o
rosto inteiro do rapaz na foto. — Essa agora chama-se “À l’occasion
d’une grande peine”.
— Sei.
— É francês.
— Sei.
— Pena, dor.
Não pena de galinha. Uma grande dor. Occasion acho que é ocasião mesmo.
Mas podia ser passagem. Melhor, você não acha? Passagem parece quejá
vai embora, que já vai passar. O que é que você acha?
— Vou ver se durmo. — Ela bocejou. — Francês, inglês, chá chinês. Você hoje está internacional demais para o meu gabarito.
— Escapismo — ele disse. E acendeu outro cigarro.
—
Uma pena que você não queira mesmo sair. — A voz dela parecia mais
longe. — Estou pensando em abrir mesmo aquela garrafa de vodca.
— Antes de dormir? — ele falou. — Toma leite morno, dá sono. Põe bastante canela. E mel, açúcar faz mal.
— Mal? Logo quem falando...
—
Faça o que eu digo, não faça o que eu. A cinza descia pelo pescoço,
quase confundida com o preto da gola. A voz dela soava um tanto irônica,
quase ferina.
— Ué, agora você resolveu cuidar de mim, é?
— Vou fazer meu chá — ele disse.
— Como é mesmo que se pronuncia?
Esquizôfrenia?
—
Não, é squizofrênia. Tem acento nesse e aí. E se escreve com esse, cê,
agá. Depois tem também um pê e outro agá. Tem dois agás.
— E nenhum
ipsilone? Nenhum dábliu? — ela perguntou como se estivesse exausta. E
amarga. — Adoro ipsilones, dáblius e cás. Tão chique.
— D ‘accord — ele disse. — Mas não tem nenhum.
— Tá bom — ela riu sem vontade. Em seguida disse tchau, até mais, boa-noite, um beijo, e desligou.
Ele
abriu a boca, mas antes de repetir as mesmas coisas ouviu O clique do
fone sendo colocado no gancho do outro lado da cidade. O disco chegara
novamente ao fim, mas antes que recomeçasse ele curvou-se e desligou o
som. Em pé, ao lado da mesa, amarfanhou o papel amarelo e jogou-o no
cinzeiro. Depois soprou as cinzas do rosto do rapaz. Algumas partículas
caíram sobre a foto da mulher. Andou então até o pequeno corredor,
curvou-se sobre a planta e com a brasa do cigarro fez um furo redondo na
folha. Respirou fundo sem sentir cheiro algum. A sala continuava
mergulhada naquela penumbra bordô, baça, moribunda, a almofada
fosforescendo estranhamente esverdeada à luz azul de mercúrio. Ele fez
um movimento em direção ao telefone. Chegou a avançar um pouco, como se
fosse voltar. Mas não se moveu. Imóvel assim no meio da casa, o som
desligado e nenhum outro ruído, era possível ouvir o vento soprando
solto pelos telhados.